Diário de isolamento social — Devaneios sobre a solidão da mulher gorda

Carolina Condé
5 min readApr 9, 2020

Em tempos de isolamento social, voluntário ou não, está sendo comum ver reclamações, vindas de todos os lados, sobre solidão, sobre o quanto as pessoas estão se sentindo mal por estarem presas em casa sem poder ter vida social e contato físico. Eu me peguei pensando nisso e percebi que o isolamento social não está me afetando tanto quanto eu vejo ele afetar os outros. Isso me chamou atenção e eu decidi pensar um pouco mais sobre o porquê. Infelizmente não demorou muito para eu entender o motivo.

Existe uma coisinha, que muitas mulheres já comentaram a respeito, que se chama ‘solidão da mulher gorda’. Para não ficar só nas minhas percepções sobre o assunto eu decidi me informar e achei alguns vários bons textos (vou deixar os links no final) que tratam do tema. Eu aprendi que não só existe a solidão da mulher gorda, mas também a solidão da mulher negra, da mulher que é mãe e da mulher PCD, entre outras. Eu vou falar sobre a solidão da mulher gorda porque essa que é a minha realidade, o que não significa que as demais não sejam cruéis (por vezes são mais cruéis do que a que eu vivo).

Basicamente, a ideia de ‘solidão da mulher gorda’ é que, por ser gorda, uma mulher vai ter muito mais dificuldade de ter um relacionamento. Isso se dá muito por causa das construções sociais em volta do corpo gordo. Não só ele é desprezado, marginalizado, odiado, mas também ele é apontado, desde muito cedo, como tudo aquilo que alguém não quer para si. E é desde muito cedo mesmo. E isso se dá em todas as relações da vida. Ou você acha mesmo que outras mulheres querem ser associadas a um corpo gordo? A amiga gorda é sempre uma ótima ouvinte, ótima para noites de fossa, mas ela nunca é boa o suficiente para ser a companhia de bar e de festa. Mas, quando tratamos de vida amorosa, a coisa é pior ainda.

Como uma mulher de 32 anos eu sou parte de uma geração que ainda tinha bailinhos nos aniversários. Como criança gorda eu sempre fui aquela que nunca foi tirada para dançar. Tá bom, eu estou mentindo quando digo que nunca fui tirada para dançar. Eu fui, uma vez, no meu aniversário. Eu lembro de ficar com vergonha, porque eu sabia que o menino que me tirou pra dançar fez isso por dó. Eu não sei dizer se ele fez por dó, mas aos 9 anos eu já tinha criado a ideia de que se alguém demonstrasse interesse por mim seria por dó. E esse é um sentimento que tem me acompanhado a vida toda. Depois da minha primeira vez, que foi com um menino X, eu lembro de falar pra uma das minhas melhores amigas que eu tinha certeza que ele só tinha feito o que fez porque deveria ter apostado com um amigo. É cruel. Ao mesmo tempo que eu tenho consciência que é cruel o que eu fiz, não só nesse episódio, eu sei também que minha reação é perfeitamente aceitável já que a vida toda eu, adolescente, jovem ou adulta gorda, sempre fui aquela que ninguém assumiu, que não andou de mão dada por aí, que era beijada nas festas apenas no cantinho escuro ou na hora do blackout.

Essa solidão dos corpos não padrão é uma dura consequência dos padrões de beleza e da construção social que coloca esses corpos como indesejáveis. Os corpos gordos, nesse caso, são tão indesejáveis que as pessoas acham comum que se relacionar com mulheres gordas seja sinal de desespero. Afinal, o senso comum é que toda mulher gorda está carente e desesperada, por isso qualquer um que se aproximar vai conseguir alguma coisa ali. Essa ideia se reproduz até mesmo para nós, que não aceitamos que o outro pode ter afeto e pode nos desejar. O pior lado disso tudo é que o medo da solidão faz com que a mulher gorda aceite relacionamentos que, por vezes, são abusivos. Isso, pra mim, é consequência de anos das pessoas nos falando que apenas partes nossas são bonitas ou dignas de elogios. Mulheres gordas foram ensinadas que elas não são boas por inteiro, que sempre há falhas, por isso amores falhos são aceitáveis, afetos pela metade são vistos como mais do que merecíamos.

A cereja do bolo é que isso tudo acontece em um mundo que ensina meninas, desde cedo, que encontrar o amor é parte essencial das nossas vidas. O sonho do romance nos é imposto e depois ele nos é retirado, sem dó, e uma nova realidade nos é dada: a de que vamos ficar sempre sozinhas. Enquanto a onda dos desconstruídos já chegou em alguns outros corpos não padrão, o corpo da mulher gorda continua sendo indesejável, não transável, não merecedor de amor. A nós é imposto um celibato forçado, uma vida sem romance ideal e não ideal também. Porque não importa quem eu sou, se gosto de chá ou de café, de sorvete ou picolé, de futebol ou vôlei, de ler no livro físico ou ebook, se eu gosto de vinho tinto ou rosé, se eu prefiro cerveja pilsen ou ipa, se eu gosto de Beatles ou Rolling Stones… Tudo isso é apagado por causa do número que aparece quando eu subo em uma balança.

De volta do devaneio, e com os dois pés no isolamento social, me dói dizer que a solidão não me incomoda. No final do dia, ela sempre foi uma grande companhia.

Referências:

Imagem:

https://www.hospitaloswaldocruz.org.br/imprensa/noticias/precisamos-falar-de-gordofobia

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Carolina Condé

Aqui eu transformo meus fantasmas em textos na esperança que eles façam sentido.